quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Centro:


"é preciso fixar o parafuso para que a forma permaneça"


A história de Macabéa, uma nordestina de fazer pouca sombra, levada para o Rio de Janeiro por uma tia, inventada por Clarice, é a reprodução “da imagem refletida em espelho manchado de ferrugem” de um povo que insiste em existir:


"Parte daquela raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito”. Como traduz Eduardo Portella no prefácio "O grito do silêncio", em A Hora da Estrela, Clarice Lispector, Rocco:"Com emprego de balconista numa grande loja de departamentos para a época, Macabéia é um sujeito - broto do que também podia ser compreendido como estudo da depreciação do humano frente às relações geradas e realidade recriada com o impulsionamento do sistema capitalista.

"Tudo isso a um só tempo. Estão ali questões culturais e de gênero. Como se vê na "dignidade" adquirida pelo namorado de Macabéia por trazer uma morte nas costas. Ainda mais, e principalmente, na escolha de um autor (Rodrigo S.M.) para a obra. Escolha que merece destaque em análise de Lúcia Helena em Nem Musa Nem Medusa e onde a autora que conviveu com Clarice esclarece:

"Esta máscara subjetiva e masculina chama a atenção do leitor pelo inevitável enclave não só com a biografia da escritora, criada em menina em Alagoas e no Recife, mas também com a "biografia" das duas nordestinas personagens, de modo que uma espécie de dramaturgia da subjetividade vai sendo entramada, espraiando - se por todo o texto, e conduzida por um processo de tecelagem cujos recursos se sustentam com base na ironia, na antítese e na repetição"É mesmo no "parafuso" que a análise pretende se centrar ou girar em seu entorno.

Aquele que é o objeto de consumo "apreciado" na vitrine pela personagem. Na vitrine da vida dessa personagem não há jóias ou vestidos bonitos. Mas um simples parafuso!Benedito Nunes (O Drama da Linguagem, pág.35) lembra: "o humor em A Cidade Sitiada neutraliza a realidade dissolvendo - a numa sucessão de aparências equívocas. Maquinais nos sentimentos e cercados de coisas rígidas".

Realidade muito presente em Clarice e na cidade que habitava, na época em que produziu o romance. Uma cidade cercada de muros: Berna, na Suíça, que “por estar na Idade Média”, segundo declara em carta a autora, permite que Clarice seja transportada ao seu tempo e espaço.
O que nos transporta para as previsões sobre a conquista do bem - estar de Condorcet, sobre a busca do humano por viver mais próximo do feliz:

"O progresso das artes mecânicas trará um novo padrão de conforto e felicidade à massa da humanidade”. Relação entre processo civilizatório e o conceito focado em Felicidade, de Eduardo Gianetti. Está no primeiro texto intitulado "A bifurcação pós - iluminista" reflexão do personagem Melo um erudito historiador de idéias que leu em demasia e encontra dificuldade em acreditar no que quer que seja:"na terra prometida da razão secular (...) as desigualdades entre os indivíduos e as nações diminuiriam, a paz internacional seria alcançada e a adoção do livre - comércio e de uma língua universal selariam a fraternidade entre os povos. O avanço do saber científico e a difusão da educação popular dissipariam as trevas da superstição e da intolerância.

(...) O enredo é familiar: a estrada da razão e da virtude que leva ao regaço da felicidade."É no parafuso ainda solto que Macabéa pode centrar a força de sua formação. Se "felicidade" é uma palavra doida inventada pelas nordestinas que vivem aos montes por aí, a loucura é uma forma solta, sem amarras. E Macabéa precisa fixar suas bases, reconhecer sua dimensão e formatar seu próprio entendimento para existir.

Que seja. Pode ouvir? É a primavera que se aproxima...

Como flor, trecho “colhido” do estudo A Felicidade em Clarice Lispector, 2002, Pós-graduação em Letras UFPE, Literatura Brasileira.

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