Sexta-feira, Julho 15, 2005 - posted by Rogério Mendes Coelho* em seu blog - extinto - cronicax.blogspot.com
Lembro que eu e o poeta Leonardo Neves, em uma de nossas longas e etílicas charlas, mais uma vez quando falávamos sobre as mulheres, dizíamos que elas eram líquidas por não ficarem muito tempo em nossas mãos. E ficamos muito entusiasmados com quanto poético e perfeito era o desígnio. Belíssima imagem escorrendo em nossas mãos. E também boca e também peito etc: diante de nossos olhos: como um fluxofoema, as mulheres.No entanto, muito recentemente, tive a sorte de poder ouvir outro desígnio que poderia concluir tão poético quanto perfeito como o de outrora. Estava eu no balcão de um bar diante de um palco onde acontecia uma “jam session” de músicos consagrados nacionalmente tocando alguns clássicos do jazz. Até que a loira, intérprete e candidata precoce a diva anunciou uma canção conhecida, muito querida por muitos.
Diante do espasmo e comoção coletiva e até mesmo por curiosidade perguntei a quem me acompanhava o que poderia ter pensado o cidadão quando compôs a música. Foi a mim respondido que no nome da cidade que também intitulava a canção. E ainda finalizou dizendo que as mulheres são como cidades.Perfeito. Para cada cidade, uma personalidade, uma imagem, uma memória, uma estética e por que não, um sorriso? Antigamente, séculos e séculos atrás as cidades, inclusive os continentes, excetuando a América, mas que ainda sofreu uma modificação, uma adaptação para normalizar-se a essa perspectiva, costumavam ser fundadas com nomes de musas por aqueles que a encontravam, descreviam, fundavam e passavam a freqüentá-las ou habitá-las e, sobretudo, conquistavam-nas. Houve muitas guerras e mortes, inclusive, por isso. Mas isso é uma outra história.
O escritor Ítalo Calvino, cubano de nascença e italiano por adoção, no seu livro As Cidades Invisíveis brincou pertinentemente com isso. Escreveu um breve livro baseado no “Il Millione”, o diário de Marco Pólo, num exímio exercício metalingüístico, constituindo cada cidade imaginária sua como mulheres tácteis e possíveis (Diomira, Isidora, Dorotéia, Zaíra, Anastácia, Zora...) relacionando a fundação e descrição de suas cidades-musas com os jogos da memória, desejo, símbolos, trocas, nomes, olhos, céu, algo imanentemente e eminentemente humano sem perder o charme referencial e cosmogônico da história que constituía os homens e seus devidos espaços. Há muito mais que possa ser dito. Mas, como idéia, no geral, é mais ou menos isso o que Calvino quis dizer.
Vou transcrever umas das cidades que mais gosto descrita. O nome da cidade é Isidora. Veja-se: “O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade. Finalmente, chega a Isidora, cidade onde os palácios têm escadas em caracol incrustadas de caracóis marinhos, onde se fabricam à perfeição binóculos e violinos, onde quando um estrangeiro está incerto entre duas mulheres sempre encontra uma terceira, onde as brigas de galo se degeneram em lutas sanguinosas entre os apostadores. Ele pensava em todas essas coisas quando desejava uma cidade. Isidora, portanto, é a cidade de seus sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada o possuía; em Isidora, chega em idade avançada. Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar; ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações.”
É interessante como Calvino “apenas” nos diz com isso ou nos faz ter certeza que nada somos sem o exercício da imaginação e desejo. Imaginação e desejo estes que constituem qualquer criação concebida, qualquer momento desfrutado e cada palavra enunciada ou escrita que é responsável por nossa sobrevivência, embora maldita ou mal dita possa ser. Realidade.Em suma, as mulheres são mesmo como cidades, habitáveis ou não, em suas geografias capazes de mover e comover. E nós, homens, carregamos conosco, como ressalta Calvino, a memória, o desejo, os símbolos, as trocas, os olhos, o céu etc de todas as cidades das quais passamos num sentimento ilustre, contínuo e diaspórico. É por isso que faz sentido o discurso de preservação das cidades, das mulheres, do amor a elas: não sobrevivem à ausência de memória. Porém, como conservá-la? Eis a questão. Brilho eterno de mentes sem lembranças.
*Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco e poeta.
Diante do espasmo e comoção coletiva e até mesmo por curiosidade perguntei a quem me acompanhava o que poderia ter pensado o cidadão quando compôs a música. Foi a mim respondido que no nome da cidade que também intitulava a canção. E ainda finalizou dizendo que as mulheres são como cidades.Perfeito. Para cada cidade, uma personalidade, uma imagem, uma memória, uma estética e por que não, um sorriso? Antigamente, séculos e séculos atrás as cidades, inclusive os continentes, excetuando a América, mas que ainda sofreu uma modificação, uma adaptação para normalizar-se a essa perspectiva, costumavam ser fundadas com nomes de musas por aqueles que a encontravam, descreviam, fundavam e passavam a freqüentá-las ou habitá-las e, sobretudo, conquistavam-nas. Houve muitas guerras e mortes, inclusive, por isso. Mas isso é uma outra história.
O escritor Ítalo Calvino, cubano de nascença e italiano por adoção, no seu livro As Cidades Invisíveis brincou pertinentemente com isso. Escreveu um breve livro baseado no “Il Millione”, o diário de Marco Pólo, num exímio exercício metalingüístico, constituindo cada cidade imaginária sua como mulheres tácteis e possíveis (Diomira, Isidora, Dorotéia, Zaíra, Anastácia, Zora...) relacionando a fundação e descrição de suas cidades-musas com os jogos da memória, desejo, símbolos, trocas, nomes, olhos, céu, algo imanentemente e eminentemente humano sem perder o charme referencial e cosmogônico da história que constituía os homens e seus devidos espaços. Há muito mais que possa ser dito. Mas, como idéia, no geral, é mais ou menos isso o que Calvino quis dizer.
Vou transcrever umas das cidades que mais gosto descrita. O nome da cidade é Isidora. Veja-se: “O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade. Finalmente, chega a Isidora, cidade onde os palácios têm escadas em caracol incrustadas de caracóis marinhos, onde se fabricam à perfeição binóculos e violinos, onde quando um estrangeiro está incerto entre duas mulheres sempre encontra uma terceira, onde as brigas de galo se degeneram em lutas sanguinosas entre os apostadores. Ele pensava em todas essas coisas quando desejava uma cidade. Isidora, portanto, é a cidade de seus sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada o possuía; em Isidora, chega em idade avançada. Na praça, há o murinho dos velhos que vêem a juventude passar; ele está sentado ao lado deles. Os desejos agora são recordações.”
É interessante como Calvino “apenas” nos diz com isso ou nos faz ter certeza que nada somos sem o exercício da imaginação e desejo. Imaginação e desejo estes que constituem qualquer criação concebida, qualquer momento desfrutado e cada palavra enunciada ou escrita que é responsável por nossa sobrevivência, embora maldita ou mal dita possa ser. Realidade.Em suma, as mulheres são mesmo como cidades, habitáveis ou não, em suas geografias capazes de mover e comover. E nós, homens, carregamos conosco, como ressalta Calvino, a memória, o desejo, os símbolos, as trocas, os olhos, o céu etc de todas as cidades das quais passamos num sentimento ilustre, contínuo e diaspórico. É por isso que faz sentido o discurso de preservação das cidades, das mulheres, do amor a elas: não sobrevivem à ausência de memória. Porém, como conservá-la? Eis a questão. Brilho eterno de mentes sem lembranças.
*Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco e poeta.
(Ítalo Calvino nasceu em 15/10/1923, Santiago de Las Vegas, Cuba e "despediu-se" em: 19/09/1985, Siena, Itália).
Um comentário:
De muito bom gosto e sensibilidade o teu texto. Por um momento, me imaginei num cenário de Salvador Dali, escorrendo por um penhasco. Depois, virei uma cidadela fria do Velho Mundo, com muros de pedra aparente. Valeu pelo desdobramento. Ah, e desculpa a invasão. Simpática a idéia de Casa Amarela, bairro da minha infância...belo blog!
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