"A poesia acompanhou os agonizantes e estancou as dores, conduziu às vitórias, acompanhou os solitários, foi queimante como o fogo, leve e fresca como a neve, teve mãos, dedos e punhos, teve brotos como a primavera, teve olhos como a cidade de Granada, foi mais veloz do que os projécteis dirigidos, foi mais forte pelas fortalezas: deitou raízes no coração do homem."
Pablo NerudaUM LIVRO EM CHAMAS
por José Eduardo Degrazia
"O papel usado fora fabricado com restos de roupas de soldados mortos e feridos, com cartazes e bandeiras inimigas. Conta Neruda nas suas memórias: "Mal meu livro ficou impresso e encadernado, precipitou-se a derrota da República". (NERUDA, Pablo.
Confesso que vivi. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2003).
...
"Não só a guerra foi assunto da poesia de Neruda nesse momento, mas também o fustigar contra as ditaduras que infestavam o continente americano, como no poema Dura elegia, contra Getúlio Vargas, sobre Luís Carlos Prestes, que reverencia o trabalho infatigável de sua mãe para libertá-lo. São poemas que já não têm a carga vital de
Espanha en el corazón, poemas da carne e do sangue do poeta, mas também são grandes obras em prol da liberdade dos povos, escritas ainda antes do congresso de Moscou de 1955 em que Kruschev desmistificou a figura de Stalin."
PARA COMEÇAR, pára sobre a rosa
pura e partida, pára sobre a origem
de céu e ar e terra, a vontade de um canto
com explosões, o desejo
de um vento imenso, de um metal que recolha
guerra e desnude o sangue.
Espanha, cristal de taça, não diadema,
sim machucada pedra, combatida ternura
de trigo, coro e animal ardendo.
BombardeioMaldiçãoAnanhã, hoje, por teus passos
um silêncio, um assombro de esperanças
como um canto maior: uma luz, uma lua,
lua gasta, lua que passa de mão em mão,
de campanário em campanário!
Mãe natal, punho
de aveia endurecida,
planeta
seco e sangrento dos heróis!
Quem?, pelos caminhos, e quem,
quem, quem, em sombra, em sangue, quem?
em faísca, quem,
quem? Cai
cinza, cai
ferro
e pedra e morte e pranto e chamas,
quem, quem, minha mãe, quem, onde?
Pátria sulcada, juro que em tuas cinzas
nascerás como flor de água perpétua,
juro que de tua boca em sede sairão ao ar
as pétalas do pão, a derramada
espiga inaugurada. Malditos sejam,
malditos, malditos que com acha e serpente
chegaram à tua arena terrestre, malditos
os que esperaram este dia para abrir a porta
da mansão para o mouro e o bandido:
conseguiste o quê? Trazei a lâmpada,
olhai o solo empapado, olhai o osso negro
comido pelas chamas, a vestimenta
da Espanha fuzilada.
Espanha pobre
por culpa dos ricos
(...)
Perguntareis: e onde estão os lilases?
E a metafisica coberta de papoulas?
E a chuva que continuamente golpeava
suas palavras penetrando-as
de buracos e pássaros?
Vou contar tudo o que passou comigo.
Eu vivia num bairro
de Madri, com os sinos,
com relógios, com árvores.
Via-se desde lá
o rosto seco de Castela
como um oceano de couro.
Minha casa era chamada
a casa das flores, porque por toda parte
estalavam gerânios: era
uma bela casa
com cachorros e crianças.
Lembras, Raul?
Lembras, Rafael?
Frederico, te lembras
debaixo da terra,
tu lembras da minha casa com balcões e onde
a luz de Junho afogava a flor na tua boca?
Irmão, irmão!
Tudo
eram grandes vozes, sal de mercadorias,
aglomerações de pão palpitante,
mercados do meu bairro de Argüelles com sua estátua,
como um tinteiro pálido entre as merluzas:
e o azeite chegava até as colheres,
um profundo bater
de pés e mãos enchia as avenidas,
metros, litros, essência
aguda de vida
(...)
"Neruda não estava sozinho na luta contra a barbárie nazista. As melhores vozes estavam com ele como bem podemos ver nos poemas
Carta a Stalingrado e
Telegrama de Moscou, de
Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, ou os do hermético e cristão Murilo Mendes no seu
Poesia e liberdade - para citar apenas dois brasileiros do mesmo período".
O homem, a luta e a eternidade
de Murilo Mendes
Adivinho nos planos da consciência
dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos
mundo de planetas em fogo
vertigem desequilíbrio de forças,
matéria em convulsão ardendo pra se definir.
Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,
o mundo ainda é pequeno pra te encher.
Abala as colunas da realidade,
desperta os ritmos que estão dormindo.
À guerra!
Olha os arcanjos se esfacelando!
Um dia a morte devolverá meu corpo,
minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição
e não haverá mais tempo.