Ocupam-me as coisas divinas e as menos "avançadas" - para usar palavra branda e conceito moderno. Andei pelas ruas, outro dia, escolhendo: qual delas irá "me salvar". São todas minhas, eu sei. Não caíram do céu ou brotaram do inferno. Eu e minha cabecinha tão criativa fomos buscá-las. Cada uma. E quando digo isso é uma a uma mesmo!
Despertar sozinha ao brotar do dia, dá nisso. Sem qualquer humor, somente com simplicidade, eu digo: "não, não será um remédio para enxaqueca ou dores de estômago. Muito menos para os ânimos...". Sim, se eu fosse afeita a leite, seria um copo dele morno com chocolate. "No capricho". O que quer dizer: “com barulho?", do liquidificador. "Sim". Para os meus filhos é simples assim! Ficou famosa entre meus amigos a frase-despertar da menininha de um ano apenas, reinando entre adultos numa casa de praia, em final de semana: "Quero lete!".
No meu caso, nunca consegui apreciar tal bebida. Exceto bem quente, nunca morna. E digo mais, com sal e manteiga. Acompanhada de torradas. Jamais pura ou com açúcar. Sinto de imediato a náusea. E, sim, "é de corpo inteiro", Clarice. Santificado seja esse despertar. Vou confessar que o primeiro destino de um movimento meu se põe a pequena distância da cama. Trata-se de um botão. O play.
Música! Até chegar ao fogão e um breve café com tapioca, não abro mão de uma voz suave ao pé-de-ouvido. Depois de cumprido esse ritual estou pronta para todas as estações. Ouvirei a voz de vários "diabinhos" dizendo dos outros, e em boa parte de si mesmos... Estou pronta para tudo. Como ler Silvina Ocampo:
"Tens cuidado: se elegeres mais coisas do inferno que do céu, iras talvez ao céu, do contrário, se eleger mais coisas do céu que do inferno, corres o risco de ir ao inferno, pois teu amor pelas coisas celestiais denotará mera concupiscência. As leis do céu e do inferno são "voláteis". Depende de um ínfimo detalhe que vás de um lugar a outro. Conheço pessoas que por uma chave girada numa gaiola de vime foram ao inferno e outras que por papel de diário ou um copo de leite, ao céu".
Corta. Passo seguinte: vou ao teclado, lembrando de um céu de estrelas sob meu olhar que deita em direção ao rio. São luzes, de uma cidade que adormece. Em paz. De volta às ruas, não me abandona a lembrança do edifício da rua que tem nome de “um novo despertar”. Para mim passou a existir - como já havia a expressão “vamo’ pras olindas” - “vou te levar pra Aurora”! Busco nova sintonia, indo sempre em frente e – vez por outra - para o alto.
“Lembro - me claramente do meu olhar fixo no balão colorido enquanto ganhava os céus. De como fui subindo junto com ele, levitando, até que ele parou por instantes, preso na cadeira mais alta da roda-gigante e depois seguiu sua viagem. Era finalzinho de tarde e estava no parque como tantas outras crianças que ostentavam seus balões de gás hélio. Enquanto o meu, havia se perdido. Eu havia deixado escapar... O adulto que me acompanhava ainda tentou consolar minha perda com outros brinquedos coloridos, jogos, algodão doce - também cor - de - rosa - até uma maçã do amor. Igualzinha a da Branca de Neve...”
Não lembro quando descrevi essa cena, mas lembro perfeitamente do sentimento que tive naquele momento da minha infância. Como é curioso o que a memória escolhe lembrar. Gostaria de poder perguntar a Silvina Ocampo se essa é uma lembrança que me levaria ao céu ao inferno. Afinal, memórias da infância são o que somos. E cada pessoa é mesmo uma sinfonia muito particularmente estranha a qualquer outra, por mais que duas delas se encontrem e estejam bem certas de que são até parecidas...
Desafino. Ah, sim. Quem não desafina? Mas me lembro bem de detalhes preciosos como uma mão trêmula ou um trejeito no canto da boca. Um pé que se mexe. Gostar de detalhes nem sempre salva. Ou absolve. Apenas excede a nossa capacidade de receber. Lidar com tudo que está ao redor já foi até fácil para mim. Fui criando canais, recebendo informações e fazendo-as circular por “linhas” alternativas de compreensão dos fatos. Círculos concêntricos dos sentimentos que estão por trás de cada gesto simples como tirar da mesa a carteira de cigarro. Ou do bolso da calça a chave do carro. Não quero ser condenada por observar tanto, mas não consigo desligar essa “tomada”... A cada nova investida do meu olhar suave sei que posso desconectar. Confesso, porque minha rede anda até firme ultimamente.
(agosto de 2008)
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